Otavio e a revolução permanente

Diferenças ideológicas à parte, Otavio Frias Filho implementou na Folha uma espécie de revolução permanente, rótulo oriundo de teorias de Karl Marx e Leon Trotsky.

Inquietude, rigor e graus estratosféricos de exigência e de cobrança alimentavam o fervor revolucionário, colocado como inescapável referencial para os jornalistas na redação.

Comecei minha vida profissional neste jornal em 1987, o que me proporcionou acompanhar, com o acelerado ritmo jornalístico, mutações históricas, como a libertação de Nelson Mandela, o ocaso da Guerra Fria, do socialismo real e do império soviético. Seguiram-se a ascensão da China e o 11 de setembro.

Otavio Frias Filho nutria incomensurável curiosidade intelectual pela dinâmica da história e da geopolítica, e estimulava empreitadas fora de nossas fronteiras. Em 1988, ao enviar o jornalista José Arbex Jr., a Folha se tornou o primeiro jornal brasileiro a acompanhar in loco a perestroika de Mikhail Gorbatchov.

Em 1991, a Redação contava com correspondentes em cidades como Moscou, Londres, Paris, Roma, Berlim, Nova York, Washington, Buenos Aires, entre outras.

Ao perceber a relevância da decolagem econômica iniciada por Deng Xiaoping, a Folha optou, em 1994, por contar novamente com um jornalista na China. Desembarquei em Pequim para retomar trabalho desempenhado por Gerardo Melo Mourão, entre 1980 e 1982.

Otavio, na incessante busca pela inovação, ousou também ao guindar, com frequência, jornalistas imberbes a cargos de responsabilidade. Dezenas de profissionais se viram, nos primórdios de suas trajetórias, envolvidos em desafiadoras coberturas e edições.

Jamais esquecerei do dia em que Otavio me convocou a uma conversa em sua sala. Corria o ano de 1988. Meu diário acusava seis meses de trabalho no jornal. Meu RG apontava 22 anos de idade.

Assim que me sentei à frente de sua mesa, Otavio se levantou e fechou a porta da sala, permanentemente aberta. Atônito e antevendo uma cobrança, eu vasculhava na memória o último erro cometido. 

Otavio começou com uma narrativa, a princípio, incompreensível para mim. Comentou, em tom monocórdio, sobre a Nasa, que, ao listar um astronauta a missão colocando sua vida em risco, admite a recusa do convidado.

Durante segundos, tentei, em vão, decifrar a mensagem embutida no discurso solene do diretor de Redação. Otavio me convidava, já admitindo a negativa, a assumir a editoria de Exterior, para substituir Caio Blinder. Acabei aceitando a incumbência.

Testemunhei Otavio também celebrar a experiência. Quando lhe comentei que Julio Abramczyk completava 50 anos de Folha, o diretor de Redação, ato contínuo, deslanchou a organização de almoço em homenagem ao médico e colunista.

A aversão a viagens de avião não impediu Otavio de conhecer a China. Ciceroneei-o, em meados dos anos 1990, em Pequim, Xian, Xangai e Hong Kong. Foi a turismo, mas não se furtou, a meu pedido, a encontrar autoridades chinesas e a visitar o Diário de Povo, porta-voz do regime.
 
Guardo memórias indeléveis do trabalho e do aprendizado com Otavio, das conversas sobre política internacional. E de suas tiradas. Certa feita, num restaurante em Xangai, líamos o cardápio nada convencional da gastronomia chinesa. Diante de pratos escabrosos, Otavio perguntou: “Isso é um menu ou um roteiro de filme do Boris Karloff?”

Otavio, descanse em paz. E muito obrigado pela revolução permanente no jornalismo.
Leia mais (08/27/2018 – 02h00)